segunda-feira, abril 10, 2006

Injustiça Fiscal

Portugal aumentou bastante a sua injustiça distributiva desde o 25 de Abril. Ninguém diz isto em voz alta, mas hoje há mais disparidade entre ricos e pobres que na ditadura. Entre as causas, que são variadas, existe um terrível mecanismo de desigualdade mesmo no centro do processo: o sistema fiscal.

Em 1967/68, no primeiro estudo estatístico da nossa distribuição de rendimentos, o nível de desigualdade era semelhante ao que actualmente se tem em França ou Irlanda, um valor intermédio na Europa. A discrepância nacional aumentou desde então em todas as décadas, menos nos anos 80, e hoje caímos para a cauda da União. Segundo o Banco Mundial, estamos ao nível de Moçambique ou Jordânia.

As implicações políticas são curiosas. Os anos revolucionários, de 1973 a 1980, registaram um dos maiores saltos na injustiça, enquanto a única (pequena) melhoria incluiu o "cavaquismo economicista". Nunca como aqui se vê tão bem a distância entre as palavras bombásticas e a realidade.

A discussão das causas económicas é muito mais relevante. Boa parte da desigualdade provém, apenas, do desenvolvimento, que sempre gera algumas diferenças. Não é difícil ser igualitário quanto todos são pobres, enquanto a forte dinâmica produtiva cria desvios inevitáveis. Mas as razões mais perturbadoras estão naquele sistema que devia corrigir o problema, mas está entre os seus principais motivos: é o Estado quem impõe muita da injustiça na nossa riqueza.

A despesa pública tem efeitos ambíguos. Por um lado, a Segurança Social contribui fortemente para aliviar a pobreza; mas, por outro, o sector público fornece quase de borla muitos bens aos ricos, da universidade ao teatro, enquanto alimenta privilegiados com salários, subsídios e regalias. Como todas estas despesas são financiadas pelo dinheiro dos pobres, o grande motor estatal da desigualdade está do outro lado do Orçamento, na receita.

A sociedade portuguesa, como todo o mundo desenvolvido, criou impostos sofisticados e complexos para promover, não o desenvolvimento, mas a justiça. Os elaborados mecanismos do IRS, IRC, etc. existem para dirigir a carga sobre os mais ricos, aliviando os pobres. Tal, aliás, só se consegue com fortes custos na produtividade, pois castiga-se quem mais produz e trabalha. Isso é aceitável, porque a equidade é o propósito consensual que o justifica.

Entre nós, porém, a enorme evasão fiscal leva os impostos a prejudicar simultaneamente o progresso e a justiça. A colossal fuga tributária perverte totalmente os nobres objectivos teóricos, orientando a quase totalidade dos impostos cobrados para o consumo e o trabalho por conta de outrem. Juntando a isto o explosivo apetite governamental por despesa, o fisco vê-se forçado a enviezar crescentemente a carga. São os impostos sobre trabalhadores e consumidores que sustentam a esmagadora despesa pública. A injustiça resultante é brutal.

O problema é tratado só com juras solenes de combate à fraude. Não admira que a injustiça cresça. Ultimamente, o cruzamento de dados e a captura de faltosos parecem ter conseguido alguns ganhos efectivos. Mas isso não aliviou a carga sobre os pobres; apenas deu mais dinheiro ao Estado. Assim, o esforço pouco melhorou a justiça. As novas técnicas tornaram mais eficaz o funcionamento de um sistema perverso.

A isto juntam-se as regras não escritas do fisco, com bastante influência na distribuição. Quem declarar donativos para desconto nos seus impostos, por exemplo, fica com uma enorme probabilidade de ser "sorteado" para inspecção fiscal (ou isto é uma regra tácita, ou então existe aqui uma incrível regularidade aleatória). Muitos contribuintes, para evitarem maçadas, começam a deixar de inscrever as suas dádivas, ou, até mesmo, de dar. Desta forma, a tacanhez dos funcionários destrói as boas intenções da lei.

A finalidade última das repartições de finanças não é arrecadar dinheiro, mas justificar os seus postos de trabalho. Por isso permanecem as infindas inspecções às declarações dos pobres, cujo eventual ganho fiscal seria sempre menor que o custo do tempo do inspector.

Portugal era tradicionalmente um país sem graves problemas sociais de desigualdade. Havia muita pobreza, mas sem os contrastes de outras zonas do mundo. É paradoxal que tenha sido a democracia a suscitar o problema, colocando-o já num estádio preocupante. Com a agravante de que as soluções propostas estão, também elas, ligadas à causa da injustiça.



João César das Neves naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Professor universitário

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